19 de fev. de 2016

APOSTASIA, ANJOS E JUIZOS



Apostasia, Anjos e Juízo

Renald E. Showers
Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma vez por todas, que o Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que não creram; e a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia; como Sodoma, e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne, são postas para exemplo do fogo eterno, sofrendo punição. Ora, estes, da mesma sorte, quais sonhadores alucinados, não só contaminam a carne, como também rejeitam governo e difamam autoridades superiores. Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda! Estes, porém, quanto a tudo o que não entendem, difamam; e, quanto a tudo o que compreendem por instinto natural, como brutos sem razão, até nessas coisas se corrompem. Ai deles! Porque prosseguiram pelo caminho de Caim, e, movidos de ganância, se precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Corá” (Judas 5-11).
A apostasia não é algo novo. Embora ela possa parecer pior hoje do que em anos anteriores, ela tem estado por aí desde quase sempre; e ela colhe o juízo de Deus.
Apóstata é aquela pessoa que abandona a religião, os princípios, o grupo ou a causa aos quais era associada e cujos ensinamentos professava anteriormente.[1] O livro de Judas dá exemplos de apóstatas dos tempos do Antigo Testamento e do juízo divino que esses apóstatas colheram.

Apóstatas do Antigo Testamento

O primeiro exemplo envolve o povo de Israel, a quem Deus havia trazido do Egito sob a liderança de Moisés (Jd 5). Todos ficaram muito satisfeitos em ser libertados da escravidão e do sofrimento que haviam experimentado durante muitos anos. Mas os incrédulos entre os israelitas ficaram satisfeitos meramente por motivos egoístas, em vez de ser pela honra e glória de Deus. Como conseqüência, Deus, “destruiu, depois, os que não creram” (Jd 5).
O segundo exemplo de Judas envolve um grupo de anjos, a quem Deus criou para um domínio angélico especial, ou esfera de influência (v.6).[2] Aparentemente, esses anjos ficaram satisfeitos com seu poder sobrenatural de influência, mas decidiram usá-lo por motivos egoístas em vez de ser para os propósitos de Deus. O pecado dos anjos consistiu em quatro ações:
1. Abandonar o domínio que lhes havia sido ordenado por Deus, ou sua esfera de influência, a fim de se tornarem parte de um domínio diferente.
2. Abandonar “seu próprio domicílio” (v.6). Esses anjos desertaram da habitação ordenada por Deus para os anjos nos céus,[3] a fim de viverem em outro local.
3. Entregar-se à “prostituição” (v.7). O versículo 7 começa, dizendo: “Como Sodoma, e Gomorra, e as cidades circunvizinhas”. Alguns intérpretes afirmam que o versículo 7 não tem nenhuma relação com os anjos do versículo 6.[4] Eles insistem que as palavras “como aqueles”, no versículo 7, se referem às cidades de Sodoma e Gomorra e não aos anjos do versículo 6, e que Judas estava dizendo que as cidades ao redor de Sodoma e Gomorra se entregaram à imoralidade sexual de maneira semelhante às de Sodoma e Gomorra.
No entanto, a palavra “cidades” em grego é feminina. Diferentemente, as palavras gregas traduzidas por “como aqueles” no versículo 7, e “anjos” no versículo 6 são ambas masculinas. Assim, “como aqueles” no versículo 7 deve referir-se aos anjos do versículo 6, e não às cidades de Sodoma e Gomorra.[5] Judas estava dizendo que Sodoma e Gomorra e as cidades ao redor destas pecaram como os anjos do versículo 6, cometendo imoralidade sexual.
Todavia, isto não significa que os anjos se entregaram ao mesmo tipo de imoralidade sexual que os homens daquelas cidades perversas. A palavra grega traduzida por “prostituição” no versículo 7 se refere a qualquer tipo de relacionamento sexual proibido por Deus.[6] A imoralidade sexual dos homens de Sodoma e Gomorra, e das cidades da circunvizinhança, envolvia irem atrás de “outra carne”. Ir “após outra carne” significa “ter relações sexuais antinaturais”.[7] Os homens se envolveram em relações sexuais não-naturais uns com os outros, embora Deus tenha criado seres humanos masculinos para serem sexualmente alheios a outros seres humanos masculinos (Lv 18.22; Lv 20.13; Dt 23.17.
4. Ir “após outra carne” (v.7). A imoralidade sexual dos anjos também envolvia ir atrás de “outra carne”. Deus criou anjos como seres espirituais, sem corpos físicos de carne e osso. Assim, os anjos do versículo 6, contrariamente à sua natureza e ao que Deus pretendia, buscaram ter relações sexuais com carne física. O final do versículo 6 indica que Deus puniu esse pecado quádruplo confinando-os a um lugar lúgubre de trevas, onde Ele os mantém até o juízo final deles no fim da história desta Terra: Ele os reservou em “algemas eternas” para o juízo do grande dia.
O apóstolo Pedro tinha em mente esses mesmos anjos quando escreveu:
Ora, se Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo. E não poupou o mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, e mais sete pessoas” (2Pe 2.4-5).
Várias coisas devem ser observadas relativamente a estes comentários: Primeiro, Pedro estava se referindo a um grupo de anjos a quem Deus havia confinado e acorrentado em um terrível lugar de trevas no passado.
Segundo, embora a tradução chame esse lugar de “inferno”, Pedro não usou a palavra do Novo Testamento para “inferno” (Hades) nesta passagem. Em vez disso, ele usou a palavra Tártaro. O mundo antigo entendia Hades e Tártaro como duas coisas distintas. Tanto os escritores apocalípticos gregos como judeus consideravam Tártaro como “um lugar subterrâneo, mais baixo que o Hades, onde o castigo divino era executado”.[8] O capítulo 22, versículo 2, do Livro Apócrifo de Enoque apresenta o Tártaro como o lugar de punição para os anjos caídos. Pedro estava indicando que esses espíritos maus estão aprisionados no mais profundo abismo das trevas.
A Segunda Carta de Pedro 2.4 é o único texto no Novo Testamento em que esse lugar de juízo é mencionado com seu próprio nome. Várias outras passagens se referem a ele através de seu termo descritivo, como o “poço do abismo” (literalmente “o abismo”). A palavra “abismo” significa “impenetravelmente profundo”. Escritores apocalípticos judeus o chamavam de “o lugar onde espíritos andarilhos [fugitivos, vagabundos], estão confinados” (Jub. 5:6ss; Eth. En. 10:4ss; 11ss; 18:11ss; Jd. 6; 2 Pe 2.4).[9]
Terceiro, o Tártaro é somente um lugar temporário de juízo para os anjos ali confinados. No final da história desta terra, eles, juntamente com Satanás e os anjos caídos, serão destinados a um outro lugar de juízo: o eterno Lago de Fogo (Mt 25.41; Ap 20.10).
Quarto, Pedro deixou bem claro que esses anjos já estavam no Tártaro por causa de um pecado que cometeram antes que a carta fosse escrita. Esse pecado não foi o pecado angelical original, a saber, a rebelião contra Deus porque, se o fosse, então todos os anjos – inclusive Satanás – estariam ali confinados. Em vez disso, tinha que ser um pecado mais repugnante, cometido por esse grupo de anjos depois da rebelião original dos anjos contra Deus.
Antes e depois do tempo de Cristo na Terra, o entendimento sobre Gênesis 6.1-4 era de que “os filhos de Deus” (Gn 6.1) eram anjos que haviam se casado com “filhas dos homens” humanas, produzindo descendentes gigantes, que se tornaram “varões de renome” antes do Dilúvio. Esses anjos abandonaram sua esfera de influência designada e esvaziaram a residência dos anjos nos céus.
A Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento hebraico, produzida por estudiosos judeus dos séculos II e III antes de Cristo, indica que “os filhos de Deus” de Gênesis 6 eram anjos.[10] O Livro de Enoque (o qual Judas cita nos versículos 14-15) e o Livros dos Jubileus, literatura judaica produzida nos séculos II e III antes de Cristo, apresentavam a mesma visão.[11] O mesmo fez Josefo, o famoso historiador judeu do século I d.C.[12] Esta visão também foi a posição histórica da Igreja primitiva até o século IV d.C.
O juízo de Deus sobre os homens de Sodoma e Gomorra, e das cidades circunvizinhas, serve como exemplo daqueles que sofrerão a punição do fogo eterno (Jd 7).

Apóstatas do Novo Testamento

Começando no versículo 8, Judas aplicou o exemplo dos apóstatas do Antigo Testamento aos apóstatas do versículo 4, que haviam se infiltrado enganosamente para dentro das igrejas. Eram falsos profetas que afirmavam “ter visões e sonhos”,[13] criam que a graça de Deus permitia imoralidade sexual e desprezavam a autoridade do senhorio de Cristo em suas vidas. Além disso, como meros humanos, eles acharam que poderiam repreender os anjos.
Judas contrastou as ações deles com as de Miguel, o arcanjo (um anjo de alta posição), que, quando em disputa com Satanás acerca do corpo de Moisés, disse: “o Senhor te repreenda!” (v.9), em vez de ousar ele mesmo repreender Satanás. Judas usou esse exemplo para aconselhar os apóstatas a terem cuidado em repreenderem os anjos, que são muito mais poderosos que eles.
No versículo 10, Judas acusou esses apóstatas de blasfemarem sobre coisas que eles ignoravam e, como animais irracionais, se corromperem com coisas que entendiam por instinto natural.
No versículo 11, Judas declara: “Ai deles!”, por causa de três coisas que haviam feito:
1. “Porque prosseguiram pelo caminho de Caim”, rejeitando a ordem de Deus e a autoridade de Seu senhorio a fim de fazerem o que queriam.
2. “Movidos de ganância, se precipitaram no erro de Balaão”. Assim como Balaão usou gananciosamente seu ministério profético para enriquecer, esses homens enganosamente afirmavam ter visões significativas em sonhos a fim de ficarem ricos.
3. “E pereceram na revolta de Corá”. Assim como Corá pereceu por causa de sua rebelião contra Moisés (Nm 16), esses apóstatas também pereceram por causa da rebelião contra os líderes da Igreja designados por Deus.
Deus certamente é rápido em perdoar e lento para se irar, mas finalmente Ele tratará da apostasia. (Renald E. Showers — Israel My Glory — Chamada.com.br)

Notas:

  1. Webster’s New International Dictionary of the English Language, 2ª.ed., não-simplificada (Springfield, MA: G. & C. Merriam, 1939), 127, s.v. “apostasy”.
  2. William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, eds./trad., “arche”, A Greek English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (1952: tradução e adaptação do Griechisch-Deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der übrigen urchristlichen Literatur, de Walter Bauer, 4ª ed.; Chicago: University of Chicago Press, 1957), 112.
  3. Otto Michel, “oiketerion”, Theological Dictionary of the New Testament (citado a seguir como TDNT), ed. Gerhard Friedrich, trad./ed. Geoffrey W. Bromiley, traduzido de Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1967), 5:155.
  4. Walter C. Kaiser, Jr., More Hard Sayings of the Old Testament (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992), 35.
  5. Edwin A. Blum, Jude in The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1981), 12:390.
  6. Arndt e Gingrich, “pornéia”, 699.
  7. Ibid., “apérchomai”, 84.
  8. Ibid., “tártaroo”, 813.
  9. Joachim Jeremias, “abyssos”, TDNT, ed. Gerhard Kittel, trad./ed. Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964 ), 1:9.
  10. New Catholic Encyclopedia, 13:435, s.v. “Sons of God”.
  11. R. H. Charles, The Book of Enoch (Oxford: Clarendon Press, 1912), 14-15, 21. The Book of Jubilees (New York: Macmillan, 1917), 57–58, 68.
  12. Flavius Josephus, Antiquities of the Jews, 1.3.1 in The Complete Works of Flavius Josephus, trad. William Whiston (Chicago: Thompson & Thomas, n.d.), 32.
  13. Arndt e Gingrich, “enypniázomai”, 270.

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